Resumo
Introdução: A relação entre perturbação obsessivo-compulsiva e religião tem vindo a ser estudada, quer na perturbação obsessivo-compulsiva com temas de religião quer nas outras formas de expressão da doença. Com este estudo pretendeu-se analisar a forma como as crenças religiosas podem influenciar as obsessões e compulsões de cada paciente, e vice-versa. Métodos: Foi efetuada uma pesquisa na PubMed seguida da aplicação de diversos critérios de acordo com as regras PRISMA para revisão sistemática. Foram selecionados 14 artigos que foram interpretados e relacionados entre si. Resultados: Verificou-se que existe uma estreita relação entre a religião e a perturbação obsessivo-compulsiva, existindo, contudo, um pequeno número de estudos que não confirma esta associação. A relação entre a religião e a perturbação obsessivo-compulsiva pode ser conceptualizada como causa ou como consequência, verificando-se que diferentes tipos de crenças têm diferentes efeitos no pensamento e, por esse meio, influenciam a apresentação clínica da doença. Discussão: Em suma, a perturbação obsessivo-compulsiva é fortemente influenciada pelas crenças religiosas dos pacientes. Futuras investigações poderão ajudar a esclarecer esta interação com vista a melhor compreender e tratar os doentes com elevados níveis de religiosidade.
Abstract
Introduction: The relation between obsessive-compulsive disorder and religion has been studied both in obsessive-compulsive disorder with religious themes and in other forms of expression of the disease. This study aims to examine how religious beliefs can influence the obsessions and compulsions of each patient, and vice versa. Methods: A survey was performed on PubMed followed by the application of various criteria according to the PRISMA rules for a systematic review. Fourteen articles were selected. The articles were interpreted and related. Results: We found a close relation between religion and obsessive-compulsive disorder. However, there are a few studies that do not confirm this association. The relation between religion and obsessive-compulsive disorder can be conceptualized as a cause or as a consequence. It was confirmed that different kinds of beliefs have different effects on the human mind and human thoughts and, by this means, they influence the clinical presentation of the disease. Discussion: The obsessive-compulsive disorder is strongly influenced by the patient’s religious beliefs. Further investigations may help clarify this interaction in order to better understand and treat the patients with high levels of religiousness.
Keywords Religion, Obsessive behavior, Obsessive-compulsive disorder
Introdução
A perturbação obsessivo-compulsiva (POC) é uma doença crónica que afeta cerca de 2.5% da população [1, 2] e se caracteriza pela presença de obsessões e/ou compulsões. As obsessões surgem como pensamentos ou imagens persistentes que causam ansiedade e levam à realização de determinadas ações (compulsões) numa tentativa de redução desse mesmo stress. Esses pensamentos, atos ou imagens estão na maioria das vezes associados à saúde, higiene, organização, simetria, perfeição e religião [3] e o seu conteúdo pode ter importância na compreensão da doença [4].
A religião consiste num conjunto de crenças que influenciam a cultura e a vida de cada pessoa que nelas acreditam. De facto, as ligações entre a religião, as crenças pessoais e a saúde mental têm vindo a ser cada vez mais estudadas [5], sendo que, entre as doenças psiquiátricas, a POC é, sem dúvida, uma daquelas que tem vindo a merecer maior atenção. Vários estudos remetem para a importância que as pessoas religiosas conferem ao cumprimento dos deveres ditados pela religião. Por conse-quência, essas mesmas pessoas demonstram uma sobrevalorização do pensamento que se irá refletir na POC [6, 7].
Neste contexto, assumem particular relevância os fenómenos de Fusão Pensamento–Ação (“Thought-Action Fusion” em inglês, TAF) que correspondem a uma tendência criada pelo ser humano de igualar os pensamentos com as ações e que podem ser divididos em 2 tipos [8, 9]: o TAF relacionado com probabilidade (“TAF-likelihood”) que consiste na ideia de que se a pessoa pensar ou falar em algum acontecimento negativo aumenta a hipótese desse evento acontecer; e o TAF-moral que consiste na ideia de que pensar num acontecimento é tão negativo como realizar esse mesmo ato. Esta noção está presente em muitos doentes com POC e é relacionada frequentemente com a religião [9, 10].
A escrupulosidade é uma característica de personalidade que, quando presente na forma mais severa, pode constituir-se como um subtipo de POC. Nela o paciente atribui um valor extremamente elevado às questões morais e/ou religiosas, apresentando obsessões relacionadas com pecado, punição e arrependimento e, em consequência, realizando atos compulsivos de oração e de prática dos rituais religiosos como, por exemplo, as confissões sucessivas [10]. Neste subtipo de POC, podem ser caracterizados dois pensamentos de teor obsessivo cuja expressão varia entre diferentes religiões e entre diferentes níveis de religiosidade: o medo de pecar e o medo da punição por parte de Deus [1, 10].
Com este trabalho pretendemos apresentar e interpretar os últimos estudos publicados sobre o tema em questão, com o objetivo de os relacionar entre si e obter informação sobre a relação entre a religião e a POC.
Metodologia
A revisão sistemática foi efetuada de acordo com as regras PRISMA [11]. A estratégia de pesquisa bem como os critérios de inclusão e exclusão foram definidos antecipadamente. Em primeiro, foi efetuada uma pesquisa na base de dados PubMed, em inglês, utilizando as palavras-chave “religion AND OCD”. A primeira pesquisa foi efetuada sem limite temporal, tendo sido identificados 66 artigos (Fig. 1).
Em seguida efetuou-se uma pesquisa no período que tinha sido inicialmente definido e que englobava os últimos 10 anos (artigos publicados entre junho de 2005 e junho de 2016), sendo considerados os artigos escritos em inglês e francês.
Os artigos foram considerados caso cumprissem os seguintes critérios de inclusão: (1) POC como diagnóstico principal; (2) pacientes diagnosticados de acordo com os critérios de diagnóstico normalizado (critérios DSM ou ICD); (3) reportar uma relação entre POC e religião.
Os artigos foram excluídos quando: (1) não incluíam dados especificamente relacionados com POC; (2) não forneciam informação sobre os procedimentos diagnósticos; (3) não continham informação sobre a relação entre POC e religião; (4) tratavam de casos clínicos isolados.
Dentro do limite temporal estabelecido foram identificados 45 artigos, destes foram excluídos 31 por não corresponderem aos critérios de inclusão (17 por não incluírem dados específicos de POC, 5 por não informarem como tinham sido diagnosticados os pacientes, 6 por não relacionarem a POC com a religião e 3 por se tratar de casos clínicos específicos de Rabis). Assim, no final foram analisados 14 artigos.
Para cada estudo foi extraída informação sobre o tamanho da amostra, a natureza da amostra, o desenho da amostra e os resultados relevantes sobre a relação entre POC e religião.
Resultados
A Tabela 1 apresenta a informação mais relevante relativa a cada artigo analisado.
De uma forma geral, existe uma relação positiva entre a POC e a religião. Esta relação foi confirmada por 13 artigos, sendo influenciada por vários fatores, tais como o tipo de obsessões, nomeadamente a escrupulosidade [1, 3, 10, 12-15, 18], o tipo de religião [6-8, 10, 13, 14, 17], mas também aspetos cognitivos, mais propriamente, o fenómeno de fusão pensamento-ação [7, 8, 12, 17]. Apenas um dos 14 artigos selecionados refere o contrário [14].
Assim, a religião influencia a sintomatologia da POC [2, 6, 7, 10, 13, 15], mas a POC também interfere com os hábitos religiosos [1, 16]. De facto, quanto mais religioso um indivíduo for maior importância confere ao conteúdo e ao controlo do pensamento e mais obsessões e compulsões apresenta [6, 7]. Os sintomas apresentados também variam em função do tipo de religião: Inozu e colaboradores [6] demonstraram que os Muçulmanos tendem a possuir mais compulsões [6] e mais medo de Deus [10] que os Cristãos, que, por sua vez, tendem a demonstrar mais obsessões que os Muçulmanos [10]. Em sentido inverso, os doentes com POC referiram que os sintomas da doença interferiram com a sua religiosidade [1].
A escrupulosidade também se relaciona positivamente com o sentido hipertrofiado de responsabilidade e com a sobrevalorização da importância do controlo do pensamento [11]. Este subtipo de POC influencia o número de diferentes tipos de obsessões que se irão apresentar no paciente [14] e o tratamento da doença [1], mas é reciprocamente afetada pelo nível de religiosidade [1, 10], por características da personalidade [3] e por conceitos religiosos [1, 17, 18].
Por último, verificamos que o TAF-moral está mais presente em pessoas com maior nível de religiosidade [7] e que, dependendo do tipo de cultura religiosa, pode estar diretamente relacionado com a religião, caso dos Cristãos [8], sendo neste caso o mediador da relação entre religião e POC [17], ou pode estar apenas relacionado com os sintomas obsessivo-compulsivos, como é o caso dos Judeus [8].
Discussão
A expressão das doenças psiquiátricas, incluindo a doença obsessivo-compulsiva, é fortemente influenciada pelo contexto social, económico e cultural. Durante séculos, considerou-se que a religião tinha um impacto positivo na saúde mental, funcionando como um elemento tranquilizador em situações de stress [5, 15, 18] e levando a que alguns doentes aumentassem os seus níveis de religiosidade [1]. Contudo, o papel da religião na sociedade tem vindo a alterar-se e os níveis de religiosidade têm vindo a diminuir, pelo que importa analisar de que forma se alterou o impacto da religião na expressão das doenças, nomeadamente, da POC.
De facto, estudos mais antigos referidos por Agorastos e colaboradores [5], prévios à data considerada nesta revisão, não mostravam relação entre a religião e a POC, descrevendo mesmo que, quando comparada com outras doenças mentais, a POC era a patologia que possuía maior prevalência de pacientes ateus. Contudo, os estudos mais recentes que foram analisados nesta revisão demonstraram uma relação entre estas duas variáveis, existindo apenas um artigo [14] onde não foi encontrada uma relação estatisticamente significativa.
Uma pessoa que apresente crenças religiosas tem tendência para sobrevalorizar os seus pensamentos, conferindo-lhe importância idêntica à das suas ações. Daqui decorre que estes pacientes tendem a sobrevalorizar o conteúdo dos pensamentos e a tentar controlá-los em todos os momentos. Na verdade, quando comparamos os grupos que possuem maior nível de religiosidade, ou seja, os que vivem com maior intensidade as crenças religiosas, com os que apresentam menor nível de devoção, averiguamos que os primeiros expressam mais pensamentos inflexíveis e controlam mais frequentemente os pensamentos [6, 7]. Tudo isto conduz a um aumento das obsessões e, por consequência, das compulsões, nomeadamente os sintomas de verificação [6, 7]. Nesta mesma sequência, o grupo referido também apresenta mais TAF-moral do que os menos religiosos. Berman e colaboradores [9] pretenderam compreender a relação entre a religião e o TAF usando um paradigma real e observaram que são os mais religiosos, quando comparados com os que possuem um menor nível de religião, que consideram com maior frequência e intensidade que pensar ou escrever sobre um assunto é tão incorreto como realizá-lo e que isto aumenta a probabilidade desse mesmo evento acontecer. No mesmo sentido, Yorulmaz e colaboradores [7] chegaram à mesma conclusão.
Outro aspeto relevante prende-se com a influência diferencial das diferentes religiões na expressão da doença, o que se correlaciona com as perspectivas ético-filosóficas de cada crença professada. Por exemplo, enquanto no Islamismo é conferida mais importância ao cumprimento dos rituais, no Cristianismo confere-se maior valor à consciência e aos valores individuais. Daqui resulta que os Muçulmanos apresentam mais sintomas compulsivos [6], para cumprir os rituais estipulados, e mais medo de Deus [10] quando comparados com os Cristãos. Por outro lado, os Cristãos demonstram mais obsessões do que os Muçulmanos [10].
No mesmo sentido, Siev e colaboradores [1] e Williams e colaboradores [17] analisaram as diferenças entre Cristãos e Judeus quanto ao TAF-moral, tendo verificado que os Cristãos apresentam níveis mais elevados deste fenómeno cognitivo quando comparados com os Judeus, o que pode decorrer do posicionamento ético-filosófico de cada religião [8, 17]. Assim, no Cristianismo o TAF-moral relaciona-se com a própria religião [8] e funciona como mediador da relação entre a religião e a POC [17] enquanto nos Judeus, se este fenómeno estiver presente, é um sinal de patologia associado à POC [8]. Quanto ao TAF associado a probabilidade não foram encontradas diferenças entre as diferentes religiões estudadas.
A escrupulosidade caracteriza-se pela presença do fenómeno de fusão pensamento–ação e também por uma sobrevalorização da importância do controlo do pensamento. Assim, Siev e colaboradores [1] e Inozu e colaboradores [10] concluíram que as pessoas com maior nível de religiosidade desenvolvem mais escrupulosidade do que as pessoas com menor nível de devoção. Contudo, Siev e colaboradores [1] constataram, ainda, que um em cada cinco pacientes diagnosticados com escrupulosidade declarava não possuir nenhum nível de religiosidade, um valor surpreendentemente elevado que poderá ser explicado pelo abandono da religião após diagnóstico.
A escrupulosidade, quando severa, pode ser estruturada como um subtipo de POC, levando ao desenvolvimento de compulsões, contudo nem todas as compulsões se manifestam, nomeadamente as compulsões de verificação e de neutralização [12]. Estes sintomas são dos que mais interferem com a vida de um paciente com POC e, portanto, se não estão presentes na escrupulosidade esta não é a forma mais severa de POC. Todavia, a severidade da escrupulosidade surge também relacionada com o conceito negativo de Deus [1], ou seja, quanto mais a pessoa considerar Deus como uma entidade punitiva, maiores os níveis de escrupulosidade manifestados.
De facto, a religião interfere na escrupulosidade. Os 2 tipos de medos característicos deste subtipo de POC (medo de Deus e medo de Pecar), mais propriamente o medo de pecar, são influenciados pelos conceitos de incerteza e pelo conceito priming de Deus [18]. Verificamos, também, que a religião interfere com o tratamento da escrupulosidade, pois quando comparamos pacientes com esta patologia com pacientes que foram diagnosticados com POC não relacionada com religião constatamos que os primeiros recorrem mais a tratamentos que têm como base o aconselhamento pastoral do que à medicação prescrita por especialistas [1]. Contudo, também se verifica que a escrupulosidade influencia a religião, uma vez que, no estudo conduzido por Siev e colaboradores [1], se apurou que 20% dos pacientes diagnosticados com esta patologia indicam que a sua relação com Deus teve benefícios após os sintomas.
Pode-se concluir que existe uma relação entre religião e POC, sendo que a religião não interfere diretamente com a prevalência da doença, mas sim com a forma como os sintomas são expressos. Importa, contudo, considerar que a inexistência de ensaios clínicos randomizados com um número de pacientes adequado à análise do problema em questão se constitui como uma importante limitação para a compreensão deste fenómeno de relação entre POC e religião.
Conclusão
Em suma, verificamos que apesar das conclusões dos diversos artigos nem sempre serem claras, podemos assumir que a religião e a POC se influenciam mutuamente. Por um lado, a religião interfere com os pensamentos dos seus crentes, tornando-os mais inflexíveis e mais preocupados com o autocontrolo, o que se poderá traduzir no fenómeno de fusão pensamento-ação e que servirá como intermediário para o desenvolvimento dos sintomas de POC. Por outro lado, a POC interfere com a vivência da religião podendo levar à adoção de comportamentos ritualizados de teor religioso.
É importante salientar que cada religião tem os seus ensinamentos e dependendo destes a forma como irá influenciar a POC e a sua expressão será diferente, tanto no caso de escrupulosidade como nos outros subtipos de POC.
Futuras investigações serão importantes para compreender com maior detalhe a relação entre POC e religião, aplicar com maior eficácia os conhecimentos à prática clínica e promover o diagnóstico precoce com vista à implementação de tratamentos eficazes e à redução das complicações da doença.
Conflitos de Interesse
Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesses relativamente ao presente artigo.